A FORÇA DO FUTEBOL EM GUARÁ: PAIXÃO E PIONEIRISMO NO TRABALHO DE BASE

Categoria: ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO
Publicado em: 01/02/2021 08:18:46

 

Se hoje a cidade se orgulha de ter várias escolinhas, muito disso se deve a pessoas como Muranga e Bodinho, que deixaram de lado uma carreira amadora para ensinarem disciplina e respeito a crianças e adolescentes

Reconhecida como um celeiro de bons jogadores, Guará teve uma época, ainda na década de 1970, em que pessoas abnegadas, ligadas ou não a empresas, formavam times juvenis que atuavam nos poucos campos existentes na cidade – tempos de Zé Nélio, Bibi, Ademar Barriga. Mais recentemente, as atuais escolinhas de futebol, que hoje movimentam campos e quadras em todas as regiões da cidade, surgiram graças ao empenho e a paixão de pessoas que, décadas depois, começaram os primeiros trabalhos de base mais amplos, com diferentes categorias.

Se alguém chegar à cidade e perguntar por Rogério Soares Faria da Cunha e por Erondino Felício Alves, dificilmente encontrará resposta. Para chegar a essas pessoas – pioneiras na arte de reunir crianças e adolescentes, de várias idades, tanto meninos como meninas, em torno de uma bola, “no peito e na raça”, como costumam dizer – o jeito mais fácil é recorrer aos nomes pelos quais são mais conhecidos: Muranga e Bodinho.

A escolinha do Muranga

Rogério, de 42 anos, goleiro de futebol “mais ou menos”, como ele mesmo admite, ganhou o apelido de Muranga provavelmente pela cabeça grande. Cabeça grande pode ser sinônimo de cabeça boa, que o levou a criar, no começo dos anos 1990, o projeto batizado de Fábrica de Talentos.

No início, Muranga treinou a base da Associação Atlética Guaraense (AAG) com moleques dos 13 aos 18 anos e, em seguida, transferiu a escolinha para o campo da antiga fábrica de fertilizantes Elekeiroz, realizando amistosos e disputando campeonatos na região, até se instalar no conjunto Itapema, onde, além do campo, abriu espaço também para equipes de futsal.

Atualmente, o Fábrica de Talentos forma equipes apenas na quadra. São cerca de 25 crianças de 10 a 12 anos e 15 adolescentes de 13 aos 18 que treinam no Itapema (o masculino) e no Ginásio de Esportes (o feminino). Muranga conta o que o levou a criar a escolinha e as dificuldades que enfrentou

“Eu via criança nova usando droga, via menina nova se prostituindo. Pensei: vou parar de jogar e fazer um trabalho com essa molecada. Sempre foi muito difícil. Nunca tivemos patrocínio. Tênis e chuteira cada um se virava como podia. Eu vivia como pedinte, sempre pedindo ajuda aqui e ali para comprar uma bola, uniforme. Eu e os diretores pagando do bolso taxa de inscrição nos campeonatos, taxa de arbitragem... É uma luta, tem que gostar. Tudo é feito na raça mesmo”, diz ele.

“Hoje, muitos dos que começaram com a gente estão casados, me veem e pegam na mão, agradecem, pedem conselhos, dizem que viraram homens de verdade por ter passado na escolinha”, acrescenta ele, que guarda na casa em que mora, no mesmo bairro, os muitos troféus e medalhas que a escolinha conquistou.

É também “na raça”, com ajuda de moradores e comerciantes, que todo fim de ano o projeto promove uma festa de confraternização na quadra do Itapema com comida, bebida, papai noel, distribuição de brinquedos e serviços de manicure e corte de cabelo.

Há alguns meses, junto com pessoas que sempre estiveram a seu lado, Muranga registrou o Fábrica de Talentos como associação. Os planos da diretoria para este ano incluem ingressar no projeto do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), que repassa recursos, via renúncia fiscal, a escolinhas esportivas de Guará. E, com isso, se inscrever em vários campeonatos, como a Liga Paulista, Sul-Minas e Copa São Paulo.

“Estamos também nos reunindo com um empresário de Franca, de uma confecção, que pode nos fornecer uniformes de treino, de jogo e de viagem, para todas as categorias, do feminino e do masculino”, ele destaca.

A escolinha do Bodinho

A história da “Escolinha do Bodinho” teve origem bem semelhante à de Muranga. Erondino Felício Alves conta que, em 1999, observou que a violência dominava, com frequência, as peladas que os meninos faziam no “campo do Curimba”, na Vila Matarazzo – que não existe mais. Bodinho mora praticamente de frente ao antigo campo. Era a época dos temíveis Thundercats, que dominavam a região. “Os meninos eram muito ignorantes. Por qualquer coisa brigavam”, lembra.

Bodinho – cujo apelido vem do jeito brincalhão e da barba e cavanhaque que ostentava naquele período – resolveu que era hora de agir. “Um dia cheguei na molecada e disse que ia começar uma escolinha de futebol. Na primeira convocação, apareceram 16 moleques. No outro dia, já eram 32. Depois não aguentava mais, de tanto moleque que apareceu”, ele relata.

A primeira convocação foi feita no feriado da Proclamação da República – portanto, o time nasceu com nome definido: 15 de Novembro, com o qual disputou o primeiro amistoso, em Franca, contra o Internacional, e o primeiro torneio, em Aramina.

“Era uma dificuldade nada”, afirma Bodinho, de 69 anos, mineiro que chegou em Guará, “eu e Deus”, em 1981. “Tinha que tirar dinheiro do bolso para tudo. Comprava a bola das mais baratas, pedia ajuda para uniforme e meião, o comércio foi ponta firme, me ajudou; cada menino se virava para ter chuteira”, descreve ele. “Lembro do sufoco que passamos uma vez, para ir a Sales Oliveira, para uma semifinal. O ônibus não chegou, fomos num carro só com nove dentro.”

Do campo do Curimba, Bodinho levou a garotada para treinar também em outros lugares, como na AAG, no Ginásio de Esportes e no conjunto Nossa Senhora das Graças. Disputou diversos campeonatos e conquistou vários – como atestam os troféus e medalhas que preenchem um dos cômodos da casa dele.

Há alguns anos, em uma edição da Copinha de Guará, o 15 de Novembro contou com um garoto que se revelou com muitos gols: Cauê, que passou pelo Novorizontino e hoje integra a categoria sub-20 do Corinthians e da Seleção Brasileira. “Era o mais novo da turma”, diz Bodinho. “E deu para ver que seria um futuro craque.”

A escolinha, atualmente, está parada, por conta da pandemia de coronavírus. Independentemente disso, a conquista de que Bodinho mais se orgulha não são os jogadores revelados para o futebol brasileiro nem os mais de 100 troféus que guarda em casa.

“A principal conquista foi a do dever cumprido”, diz ele. “No começo, os meninos eram muito desobedientes em casa, iam mal nos estudos. Eu falava com eles e muitas vezes resolvia os problemas. Se brigassem nos treinos, eu fazia eles se abraçarem. Criança é fácil de lidar, se você se unir a eles”, ensina Bodinho, acrescentando que sentiu “um orgulho muito grande” quando, em 2011, o time sub-13 ganhou o troféu de fair play (mais disciplinado) em um torneio em Santa Cruz das Palmeiras. “É difícil uma criança que jogou aqui que hoje não toma minha benção quando me vê. A maioria se tornou cidadão de qualidade.”