MÃES À TODA PROVA: A HISTÓRIA DE HERCÍLIA E A LUTA PARA FORMAR O FILHO MÉDICO

Categoria: ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO
Publicado em: 11/05/2021 11:55:51

A literatura, as novelas e o cinema estão repletos de histórias de amor, de luta e perseverança de mães pelos filhos – a história de Hercília Aparecida Dias de Souza bem que poderia estar nas telas de cinema ou nas páginas de um livro. Essa guaraense transformou a maior parte de seus 53 anos de vida em uma tentativa incansável de satisfazer o desejo de seu único rebento de se formar em Medicina – o que está prestes a virar realidade.

Fosse um filme, o roteiro teria muitos capítulos, com um enredo recheado de suor e lágrimas.

Nascida na Vila Vitória na segunda metade da década de 1960, Hercília teve a sorte de escapar do destino reservado à grande maioria das crianças e adolescentes do bairro mais populoso de Guará – formado, naquela época, majoritariamente, por famílias de baixa renda cuja única possibilidade de renda eram o trabalho doméstico, o corte de cana e a colheita de amendoim e algodão. Trabalho pesado, que dificilmente dava para conciliar com os estudos.

Hercília é a caçula de uma prole de sete filhos. O pai Celino, falecido em 2013 aos 87 anos, e a mãe Odília, hoje com 95, trabalhavam pesado na roça, assim como os irmãos.

– Por ser a mais nova, fui poupada disso - conta ela. Meu pai dizia que eu ia estudar. Um tio, inclusive, sempre me chamava de “professora”, desde pequenininha. Quando eu era bebê ainda, minha mãe me levava para a roça e, para poder trabalhar, me colocava para dormir embaixo dos pés de café.

Matriculada no Nehif Antônio, Hercília lembra da primeira professora – “a Cleonice, do Manfredo” – e de ter sentido, logo no início daquele primeiro ano letivo, a sensação de que um dia poderia vir mesmo a se tornar professora, ao ter contato com a cartilha Caminho Suave, com a qual todos os meninos e meninas da sua geração foram alfabetizados.

Das lembranças daquele tempo, década de 1970, Hercília guarda a confusão que arrumou ao ver o Papai Noel, que ela acreditava que existisse, mas que nunca tinha visto. Naquele dia, por determinação da mãe, Hercília havia até ensaiado uma música para recepcionar Noel quando ele chegasse. Mas, quando ele chegou, todo paramentado, foi um salseiro só. Aquele Papai Noel – na verdade, um funcionário da loja onde o presente de Hercília fora encomendado – não entendeu nada:

– Quando vi o Papai Noel, gritei de medo. E gritei muito, não parava de gritar. O homem precisou tirar a roupa para eu me acalmar.

Outra lembrança marcante, conta ela, foi o privilégio, como aluna da 7ª série, de ter integrado a turma que, durante um evento em Ituverava, fez a primeira apresentação da “Canção para Guará”, composta pelo casal de professores Gleide e Joaquim Martins – dona Gleide ministrava a disciplina de Música no “Nehif”.

Concluídos o primeiro e o segundo graus no Nehif Antônio e o colegial no Rondon, Hercília decidiu que queria trabalhar. A família insistia que ela continuasse os estudos, até a faculdade, mas Hercília estava irredutível: queria trabalhar. Batalhou emprego aqui e ali, sem sucesso. Conseguiu, na prefeitura, uma colocação em “serviços gerais” e, como tal, passou a trabalhar na cozinha do Colégio Marechal Rondon.

Em casa e no trabalho, as pessoas tentavam convencê-la a voltar a estudar. “Isso aqui não é para você”, “procura outra coisa”, diziam. Em 1991, já remanejada para a cozinha do Nehif Antônio, Hercília se casou. Logo veio a primeira gravidez, que ela perdeu. Em 1994, nasceu Acaz Lincoln. Lincoln é o nome de um dos presidentes mais marcantes da história dos Estados Unidos. Acaz é um nome bíblico, do 12º rei de Judá (763-727 a.C.), e significa “possuidor”.

Se quando era pequena o tio havia profetizado que Hercília seria professora, o mesmo aconteceu com Acaz, com uma diferença: o próprio garoto é quem dizia o que queria ser quando crescesse.

– Era uma coisa incrível. Com dois/três anos de idade o Acaz dizia que seria médico. E médico pediatra. E não tirava isso da cabeça - diz a mãe.

Quando contraiu uma infecção no intestino, que o obrigou a tomar várias doses da dolorida Bezetacil, Acaz reforçou o desejo, desta vez com uma pontinha de vingança. “Mãe, quero ser médico para dar injeção nos médicos que me deram injeção”, ralhou o garoto.

Hercília conta que o instinto médico de Acaz se manifestou quando seo Celino teve uma perna amputada. O neto estava sempre próximo e ajudava o avô no que era necessário. E, muitas vezes, manifestou sagacidade, como estudante, ao recitar tabuadas para os coleguinhas e, nas aulas de Ciências, explicar a eles como as plantas brotam e crescem.

Mesmo assim, o filho era um garoto de poucas palavras. Conversava muito pouco com todos, o que levou uma professora a indicar uma consulta com a psicóloga da própria escola. Hercília conta como foi a consulta:

– Ele disse para a psicóloga: não sou louco, o que eu estou fazendo aqui? A psicóloga, depois, me contou que o Acaz disse a ela que ia ser médico e ela achou possível, porque ele era muito inteligente, mas eu disse a ela que não tinha condições para isso. Daí ela me disse: “Você nunca mais vai falar isso. Se seu filho quer, ele vai conseguir”.

A partir desses acontecimentos, Hercília ficou possuída pela ideia de realizar o desejo do filho. Como cozinheira de escola, seria muito difícil. Procurou a Escola de Comércio de Guará e se matriculou no curso de Magistério. Não deu conta. Abandonou o curso, que ela fazia enquanto trabalhava como cozinheira. A situação mudou de figura quando Hercília viu um comercial na TV que utilizava uma música de Raul Seixas, “Tente Outra Vez”, que a marcou profundamente.

– Procurei o diretor da Escolinha de Comércio, mas ele disse que não tinha vaga, que era para voltar no ano seguinte. Voltei e ele disse a mesma coisa. No outro ano, a mesma coisa. Demorou três anos até eu voltar a cursar Magistério. Foi uma luta muito grande - diz Hercília, que estava separada do marido.

– Levava o Acaz para estudar no Nehif, fazia magistério, trabalhava na cozinha da escola. Foi tudo muito difícil. Não tinha creche, então eu levava o Acaz comigo no trabalho e ele ficava dormindo na prateleira das panelas - ela explica.

A sorte, enfim, resolveu dar as caras. Assim que Hercília se formou em Magistério, a prefeitura de Guará abriu concurso para professores. Hercília passou no concurso. Depois de um breve período lecionando no Adelaide Garnica, Hercília foi transferida para o Nehif Antônio.

Num piscar de olhos, Hercília Aparecida Dias de Souza passou da cozinha para a sala de aula do Nehif. Não chegou a dar aula para o próprio filho, que já havia concluído os quatro primeiros anos, mas todo início de ano letivo colocava a bolsa dele na carteira da frente, para garantir que estudasse sem a zoeira do fundão. E, para assegurar que sua vaga como professora não fosse de alguma forma ameaçada, passou a cursar Pedagogia em Franca.

Acaz concluiu o colegial e passou a prestar vestibulares. Passou em vários – todos, porém, em faculdades particulares, que Hercília não tinha condições de bancar. Em faculdades públicas, chegou a passar em Odonto e Fisioterapia, mas o garoto queria mesmo era Medicina. Até que, em 2017, obteve uma vaga na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), em Mato Grosso do Sul. Era para ele se formar neste ano, mas, com a pandemia, a formatura ficou para o ano que vem.

Hercília, que em 2019 voltou a lecionar no Adelaide Garnica e desde 2014 trabalha, também, com crianças com deficiências múltiplas na Apae, não vê a hora de comemorar a formatura do filho.

– Foi uma caminhada muito dura. Tive de deixar de fazer muita coisa até que tudo desse certo. O sonho dele vai ser o meu sonho realizado.