16/06/1957: UM GUARAENSE NO GOL DA SELEÇÃO

Categoria: ESPORTE
Publicado em: 07/08/2021 13:01:15

No dia 16 de junho de 1957, em uma partida de preparação para a Copa do Mundo da Suécia, a Seleção Brasileira entrou em campo para enfrentar Portugal, no estádio do Pacaembu, em São Paulo, com Paulinho de Almeida e a enciclopédia Nilton Santos nas laterais. Com Jadir e Bellini na zaga. Com Zito e Didi na armação. Com Garrincha e Tite nas pontas. Com Pagão e Del Vecchio completando o ataque.

E, no gol, Paulo Martorano, de Guará.

Naquele dia, a Seleção, treinada por Silvio Pirillo, venceu por 3 a 0, gols de Zito, Del Vecchio e Mazzola – que substituíra Del Vecchio. A presença entre os titulares do escrete canarinho era o ápice da carreira do goleiro Paulo, como ele era chamado no meio esportivo.

Com a atuação invicta diante de Portugal, Paulo se consolidava no elenco que iria disputar o Mundial de 1958. Como reserva de Gilmar, ele já havia integrado o grupo que disputou o Sul-Americano de Seleções, em 1956, no Uruguai. Como ele próprio diz, estava “na bica” para disputar a Copa do Mundo – mas uma cotovelada pôs tudo a perder.

Nascido em 3 de maio de 1933, quando o Estado de São Paulo ainda lambia as feridas da Revolução Constitucionalista, Paulo cresceu em uma Guará de poucos moradores, ruas sem asfalto e sítios sem energia elétrica. Nem passava pela cabeça a ideia de que dali alguns anos ele faria parte do fantástico mundo do futebol profissional, convivendo com lendas do naipe de Zizinho, Didi, Garrincha – e um certo Edson Arantes do Nascimento.

Adolescente, passou a estudar no Colégio Marista, em Franca, onde jogava bola e praticava atletismo. O pai tinha uma oficina na qual produzia e reformava carroças, charretes, carrocerias de caminhão, tachos de cobre. A família morava perto do campo da Associação Atlética Guaraense. Foi a senha para que, aos 16 anos, em uma das raras folgas do internato, Paulo se apresentasse para defender o gol da equipe da AAG.

“Entrei no time e disputei o campeonato amador da região. Fomos campeões em Altinópolis. Precisávamos do empate e o jogo terminou 1 a 1. O pau quebrou feio lá. Fechei o gol. O bicho foi bom. O Sebastião Rosa (fazendeiro) me deu 500 mil réis. Com o bicho, eu paguei o Marista”, lembra Paulo Martorano, aos 88 anos, instalado em um confortável apartamento no centro de Ribeirão Preto, com o bom humor de sempre, já recuperado da Covid-19, contraída 30 dias depois de ter sido imunizado com a segunda dose.

Aos 17 anos, Paulo mudou-se para Campinas, para estudar no Ateneu Paulista, levado por alguém que, segundo ele, arrebanhava jogadores amadores para atuar no time do colégio. Estudava e ganhava uns trocados. O campo do Guarani – não o atual Brinco de Ouro da Princesa, um mais antigo – era pertinho do Ateneu. Paulo conta:

“Um dia, eu e uns amigos pulamos o muro para ver o treino. O goleiro do Guarani tinha ido ao Rio de Janeiro fazer exame para Direito. Viram a gente ali e alguém gritou: tem goleiro aí? Os amigos falaram: tem sim. O roupeiro, o Camisola, que morava no estádio, me deu chuteira, jogou uma camisa em cima de mim e falou: vem aqui sujar roupa, né? Fechei o gol no treino, fui campeão juvenil, passei para o profissional e não saí mais”.

Foram sete anos no Guarani. As atuações de Paulo chamaram atenção dos grandes da capital. “Jogamos contra o Palmeiras no Parque Antártica. Perdemos de 4 a 0 e fui o melhor em campo. Saí carregado, peguei até pênalti. O Palmeiras quis comprar meu passe. Tinha 18 anos. Fui treinar lá, mas não quis ficar, era muito novo, tinha um técnico argentino meio esquisito...”, conta Paulo.

“O Lula, técnico do Santos, também me queria. O Lula tinha me convocado três vezes para a Seleção Paulista. Mas o Santos não tinha dinheiro. Daí o São Paulo me comprou”, ele acrescenta.

Paulo defendeu o Tricolor de 1956 a 1959. Fez 63 partidas, com 29 vitórias, 17 empates e 17 derrotas. Foi campeão paulista de 1957, com o veterano Zizinho, de 35 anos, na equipe.

Curiosamente, o São Paulo comprou o passe do guaraense Paulo Martorano numa época em que destinava todo seu dinheiro para a construção do estádio do Morumbi. O clube jogava no Canindé, depois assumido pela Portuguesa. O Morumbi foi inaugurado em outubro de 1960, mas Paulo lembra que, durante a construção, o time treinava lá – o campo já existia.

Pouco tempo depois de ter sido titular da Seleção Brasileira no amistoso contra Portugal, em uma disputa de bola com o atacante Nardo, do Juventus, Paulo levou a cotovelada que o tirou da disputa por um lugar na Seleção que iria para a Suécia. “A cotovelada afundou a minha cara, quebrou meu maxilar”, afirma Paulo. “Fiquei um mês parado e perdi a vaga na Seleção.”

Seleção, aliás, da qual ele saiu invicto – sem tomar nenhum gol.

ADIVINHE QUEM TOMOU O PRIMEIRO GOL DE PELÉ...

A trajetória do guaraense Paulo Martorano nos anos de ouro do futebol brasileiro é reforçada por um fato pra lá de histórico: foi ele o goleiro que sofreu o primeiro gol da carreira de Pelé em uma partida oficial. Em 26 de abril de 1956, Pacaembu, o São Paulo enfrentou o Santos pelo Torneio Rio-São Paulo. Pelé entrou no lugar de Dorval e marcou na vitória santista por 3 a 1. “Ele chutou do bico da grande área”, conta Paulo. “A bola pegou nas duas traves antes de entrar”, ele detalha.

Dino Sani – que seria campeão do mundo na Suécia – marcou para o tricolor. Del Vecchio e Pagão marcaram os outros gols santistas. A renda da partida foi de Cr$ 819.525,00, para um público de 19.498 pessoas.

Pelé já havia marcado um gol pelo Santos – porém, em uma partida não oficial. Foi no feriado de 7 de setembro de 1955, quando o Santos foi convidado para um amistoso, em Santo André, contra o Corinthians local. Foi a estreia de Pelé como jogador profissional, aos 15 anos de idade.

Na súmula deste jogo, recuperada há pouco, depois de 63 anos desaparecida, o nome do jogador foi grafado como “Gasolina”, que era o apelido com o qual os jogadores mais experientes do Santos, como Zito e Pepe, o chamavam logo que chegou à Vila Belmiro.

Sim, ele já havia feito um gol como profissional do Santos antes de vencer Paulo Martorano naquele confronto com o Tricolor pelo Torneio Rio-São Paulo. Mas, naquele dia, em Santo André, Edson Arantes do Nascimento ainda nem se chamava Pelé.

O MUNDO DE PAULO MARTORANO

ANOS DE OURO – Alguns enaltecem o time de 1982, que caiu diante da Itália na Espanha, muitos acham que a equipe tricampeã em 1970 tenha sido tão boa quanto, mas é difícil tirar da Seleção de 1958 o rótulo de a melhor Seleção Brasileira da história. Por vários motivos: teve grandes jogadores, conquistou o Mundial até então inédito e reuniu, pela primeira vez, uma dupla que, junta, nunca perdeu um jogo pela Seleção: Garrincha e Pelé. O título de 58 enterrou o “complexo de vira-lata” do brasileiro, segundo o escritor Nelson Rodrigues. Se não fez parte do elenco na Suécia, Paulo conviveu intensamente com jogadores que viraram lendas.

FAMÍLIA – Martorano teve três filhas, Patrícia, Kátia e Gláucia, que lhe deram cinco netos: Rafael, Fábio, Gabriel, Vitor e Felipe. Paulo vive com a esposa Maria Helena em um apartamento em Ribeirão Preto cuja rua tem o mesmo nome da rua em que morava sua família em Guará: Campos Sales. Aposentado da Receita Federal, Paulo mantém um comércio de equipamentos médicos, hospitalares e odontológicos.

GUARANI – Paulo defendeu o clube de Campinas por sete anos. Foi o primeiro jogador do Guarani a ser convocado para a Seleção Brasileira.

MAURO CAPITÃO – O capitão são-paulino na época de Paulo era o zagueiro Mauro, que esteve na Suécia em 1958 e levantou o troféu de bicampeão mundial no Chile em 1962. Depois de deixar o São Paulo, Mauro foi bicampeão da Libertadores e mundial pelo Santos de Pelé. Como Paulo, encerrou a carreira no México, onde treinou o Oro, equipe pela qual Paulo também atuou. Ao encerrar a carreira no México, Paulo treinou o Necaxa.

GUTTMANN – Um dos treinadores de Paulo no São Paulo foi um húngaro apontado pela revista France Football como um dos 50 melhores técnicos da história do futebol. No Honved, da Hungria, que marcou época, ele treinou ninguém menos que Puskás. Além do título paulista de 57 pelo São Paulo, Béla Guttmann é tido como o homem que influenciou decisivamente a tática de Vicente Feola no primeiro título mundial da Seleção Brasileira.

QUE TRIO – No São Paulo, além da lenda Zizinho, Paulo Martorano atuou no time que contava com um trio de ataque considerado um dos melhores que o futebol brasileiro já teve: Gino Orlando, Dino Sani e Canhoteiro.

ONDINO VIERA – O treinador “argentino, meio esquisito” citado por Paulo era, na verdade, o uruguaio Ondino Viera, que treinou o Palmeiras em 1953. Foi técnico do River Plate, do Peñarol e do Nacional de Montevidéu. No Brasil, trabalhou no Fluminense em 302 jogos. É lembrado na história do Vasco por ter introduzido a faixa na camisa do clube como influência do tempo em que treinou o River.

SE... – Martorano diz que, ao deixar o Guarani, se fosse mais experiente na época, teria escolhido ir jogar no Santos do técnico Lula, onde estava começando um garoto de 15 anos de apelido Gasolina – para o mundo, Pelé.

IMAGENS:

Paulo Martorano em jogos da Seleção, do Guarani e do São Paulo.

Com as camisas da antiga CBD e do Guarani.

Com o lendário Castilho, goleiro do Fluminense.

Com os ex-jogadores Ferreira, Guto, Dié e Paulo Alcântara no campo da AAG – eles foram homenageados pela prefeitura na abertura da Copa Guará de Futebol Infantil em 2011.

E com a camisa da Seleção e com a família reunida no domingo 11 de julho em Ribeirão Preto.