O HOMEM DO APITO E DOS FOGUETES: GIL JUNQUEIRA

Categoria: ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO
Publicado em: 08/11/2022 19:35:46

Em um domingo qualquer, no campo da Associação Atlética Guaraense, ambos os times já estavam uniformizados, o jogo prestes a começar, jogadores ansiosos, quando a turma se deu conta de que faltava um detalhe importante: o juiz. Mais do que depressa, dirigiram-se a ele, que, como sempre, zanzava por ali – sempre que havia um jogo na AAG:

– Gil, apita o jogo pra nóis.

– Não vou apitar não.

Foram várias as tentativas. Todas infrutíferas.

– Pô, Gil, apita aí.

– Vou apitar não.

Mesmo assim, alguém ordenou:

– Menino, vai lá buscar o apito na casa dele.

No que Gil, ligeiro, aparteou:

– Não precisa. Tá aqui no meu bolso.

E o jogo, para felicidade geral de todos, enfim começou.

Acabou por virar folclore na cidade essa passagem envolvendo o agricultor Gil Junqueira, certamente o homem que mais apitou jogos no campo do agora abandonado estádio Artur Alves dos Santos, onde desfilaram várias gerações de grandes jogadores da Guaraense.

A relação de Gil Junqueira com a Associação, porém, vai muito além do apito, que ele, de fato, carregava no bolso da calça. Gil atuou como zagueiro e lateral-direito da equipe, numa época em que sobrava gente boa de bola na cidade.

O estilo voluntarioso, um tanto bruto, afugentava os atacantes adversários, assim como rendeu uma cena da qual o filho mais velho, Matheus, se recorda. “Numa partida, ele se machucou com certa gravidade e saiu do campo direto para o hospital na lambreta do Silvaninha”, conta Matheus.

Silvaninha, que também jogava naquela partida, é irmão de Paulo Martorano, o guaraense que defendeu o gol da Seleção Brasileira em um amistoso contra Portugal, no Pacaembu, durante a preparação do Brasil para a Copa de 1958.

Gil Junqueira também foi diretor da Associação Atlética Guaraense. Ocupou, em várias gestões, uma vaga no departamento esportivo da AAG. Em uma de suas passagens pela diretoria, foi o responsável por replantar o gramado do estádio, lembra outro filho, José Oscar, o “Chuchu”. “Quem replantou o campo fomos eu, meu pai e o Zezinho Perninha, em 1968”, confirma ele, que também jogou durante muitos anos no time principal da Guaraense.

O gramado novinho em folha da Associação foi inaugurado no início do ano seguinte com um amistoso entre a AAG e a equipe juvenil do Vasco da Gama, pela qual atuava o meia Paulo Alcântara, o Paulinho do Zé Vital. O time carioca tinha o goleiro Mazarópi e o centroavante Roberto Dinamite, que marcariam época no futebol brasileiro nas décadas seguintes, de 1970-80.

O Vasco abriu o placar com Dinamite, lembra hoje o centroavante Geraldo Chaud, que atuou naquele jogo e se tornaria o maior artilheiro da história da Guaraense. Guto – que na época integrava o juvenil do Fluminense – e Adilson Chaud viraram o placar para a Associação: 2 a 1.

Gil Junqueira teria completado 100 anos no último dia 23 de setembro. Ele nasceu em 1922 em Aiuruoca, pequeno município – atualmente tem seis mil habitantes – do sul de Minas, próximo das divisas com São Paulo e Rio de Janeiro, terra natal também da atriz Isis Valverde.

A família, então, transferiu-se para São Joaquim da Barra, onde o pai de Gil – também Mateus, sem o h – comprara um pedaço de terra. A mudança da família para Guará, pouco tempo depois, se deu por conta de força maior, afirma o primogênito de Gil, Matheus, que herdou o nome do avô. “Meu avô e um primo dele brigaram feio, de tal maneira que o coronel Oscar Junqueira falou: um dos dois tem que sair daqui.”

Foi daí que o pai de Gil comprou terras em Guará, na região do Lajeado, na saída para Ribeirão Corrente. Com a morte dos pais, Gil e um irmão, Sebastião Junqueira, o “Titião”, compraram do restante da família a Fazenda Santa Augusta.

Chuchu recorda-se que foram muitas as vezes em que Gil, apaixonado pelo time da Guaraense, trocou sacas de milho por foguetes na venda de Jair Cherutti para saudar a entrada dos jogadores em campo.

Gil casou-se com Jorgina Terezinha Pereira, mineira como ele, de Guaxupé. Jorgina veio para Guará com o pai, o ferroviário Jorge Alves Pereira, que testemunhou a origem e o crescimento da cidade. Seo Jorge foi transferido de Guaxupé para trabalhar em Guará, como conferente de cargas, assim que foi inaugurada a Estação Ferroviária, em agosto de 1903, menos de um ano depois da fundação do município, datada de setembro de 1902, quando o povoado contava com poucas casas e algum comércio.

Gil e Jorgina tiveram nove filhos: Matheus Jorge, Gilmar, Ana Augusta, Maria Clara, Henrique de Paula, Maria Aparecida, José Oscar, Jorge Augusto e Vânia Amélia. Com exceção de Maria Clara, que faleceu ainda muito pequena, todos estão por aqui. Matheus, o mais velho, tem 70 anos. Vânia, a caçula, 58.

Além de jogador e diretor, Gil Junqueira atuou como treinador da Associação Atlética Guaraense. Ele comandou a equipe na primeira participação da AAG na Copa Arizona, em 1976. “Embora trabalhasse na roça, longe da cidade, ele não perdia um treino”, destaca Geraldo, o centroavante. “Chegava no campo antes de todo mundo.”

A Copa Arizona reunia centenas de equipes amadoras de todo o estado de São Paulo. Começava pelas fases regionais, com 32 equipes se enfrentando em sistema de mata-mata, em uma única sede. Em 1976, a fase regional aconteceu no estádio Ceribeli, em São Joaquim da Barra.

Domingo a domingo, a Guaraense foi eliminando seus adversários até chegar à decisão, contra Miguelópolis, a quem venceu por 4 a 1. De acordo com os registros de Geraldo, o time contava com Minhoca, Bandola (goleiros), Djalma, Tim, Domingão, Deta, Bruneli, Mofio, Paulo, Silvinho, Geraldo, Chuchu, Adilson, Motinha, Walmir e Queijinho.

Nas fases seguintes, contra times de outras regiões, venceu o Olimpia, de Jardinópolis, campeão da etapa de Ribeirão Preto, por 2 a 1, jogando no Ceribeli. Em Guarulhos, passou pelo Cometa, de São Paulo, por 5 a 3 nos pênaltis, após empate sem gols no tempo regulamentar. Só parou na equipe de Arthur Alvim, tradicional bairro paulistano, ao perder de 1 a 0, na capital.

Gil morreu em 24 de maio de 1985. Desde 1999, por conta da Lei 1.145, aprovada pela Câmara e promulgada pelo então prefeito César Moreira, o estádio localizado dentro do Complexo Esportivo Américo Migliori, nos fundos do Ginásio de Esportes, leva o nome de Gil Junqueira.

“Ele era muito conhecido, vivenciou muito o futebol em Guará”, testemunha o ex-jogador e hoje mestre de obras José Afonso Fernandes Peres, sobre o agricultor apaixonado por futebol, que jogou, dirigiu e treinou a Associação Atlética Guaraense – e vivia com um apito no bolso, sempre disposto a fazer a bola rolar.