ADVOGADO CRIMINALISTA DE GUARÁ LANÇA LIVRO SOBRE O SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO

Categoria: ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO
Publicado em: 22/12/2022 15:56:41

O que as penitenciárias brasileiras têm a ver com o regime capitalista sob o qual vivemos? Na opinião do advogado criminalista guaraense Gabriel Abboud, tudo! Acima de ditados populares e do senso comum de que o detento tem que trabalhar para ajudar a custear os gastos públicos com as prisões, Abboud investiga as raízes de como o sistema penitenciário foi construído no Brasil. E o porquê do surgimento das penitenciárias privadas, mantidas por empresas – com dinheiro público, é claro.

Como trabalho de conclusão de mestrado, Gabriel Abboud mergulhou nas características do Complexo Penal Parceria Público-Privada de Ribeirão das Neves, em Minas Gerais. O resultado deste esforço de investigação rendeu um livro, lançado em 9 de novembro último, na Livraria da Travessa, em Ribeirão Preto.

Publicado pela editora Dialética, com 208 páginas, “Valor aprisionado: crise, trabalho e cárcere desde o capitalismo brasileiro” tem apresentação do professor de Direito da USP e ex-presidente do Conselho Nacional de Política Criminal do Ministério da Justiça, Alamiro Velludo Salvador Neto, e prefácio do docente de pós-graduação da Unesp-Franca, Paulo César Corrêa Borges, que orientou o autor durante o mestrado.

Filho do comerciante Emílio e da diretora de escola Aline, Gabriel Abboud fez os estudos primário e secundário no Colégio Evolução, em Guará, e formou-se na Faculdade de Direito de Franca. Atualmente com 27 anos de idade, reside em Ribeirão Preto, onde atua na área criminal. Com a conclusão do mestrado, foi aprovado no doutorado da Unesp, com início em 2023.

Segundo ele, a ideia do livro foi a de estudar a exploração do trabalho prisional em presídios de administração privada no Brasil. “Foi um trabalho que me obrigou a estudar também economia política, sociologia e história”, afirma Abboud, “porque a história da exploração do trabalho prisional é a história da própria pena no Brasil”.

Gabriel Abboud, cujo objetivo é tornar-se também professor universitário, “de preferência em uma instituição pública”, concedeu a seguinte entrevista, com perguntas elaboradas pelo Núcleo de Comunicação da prefeitura de Guará.

PERGUNTA - Sua obra investiga a exploração do trabalho de detentos em penitenciárias privadas no Brasil. Há diferenças em relação às penitenciárias públicas?

RESPOSTA - Com certeza. As penitenciárias de administração privada têm uma configuração muito diferente das demais, principalmente porque elas se apresentam como empresas, e não há como pensar que um grupo empresarial funcione sem que o seu horizonte seja o lucro. Para entender isso, meu estudo focou no primeiro complexo penal em parceria público-privada do Brasil, o de Ribeirão das Neves, em Minas Gerais.

Não se pode negar, por exemplo, que presídios dessa natureza têm à sua disposição uma tecnologia, limpeza e outros fatores em um patamar muito melhor do que os públicos. Mas também não se pode negar – e a pesquisa demonstra isso – que ela não está submetida aos mesmos problemas da cadeia pública.

A “clientela” desse tipo de administração presidiária, em regra, não está encarcerada pelos delitos que mais prendem no Brasil – furto, roubo, comércio de drogas ilícitas, por exemplo. Estão lá, em sua maioria, por crimes sem violência, com penas significativamente menores, o que implica também em um grau de reincidência menor e estatísticas mais positivas para o estabelecimento, em que pese, no entanto, a população desse complexo penal se parecer muito com aquela aprisionada nas penitenciárias públicas do país, ou seja, homens pretos e pardos, com idade entre 18 e 29 anos.

Ainda assim, os repasses públicos do estado de Minas Gerais são, em média, quase quatro vezes maiores do que as cadeias públicas recebem por preso, o que se agrava ainda mais na medida em que existem, em seu interior, quarenta e seis empresas convocadas e interessadas na exploração da força de trabalho dos aprisionados, que, quando muito, recebem algo pelo serviço, mas não podem se sindicalizar ou sequer questionar as condições do trabalho.

Por isso podemos dizer que são modelos muito diferentes, mas que não partem do mesmo lugar e não enfrentam os mesmos desafios.

PERGUNTA - “Cabeça vazia, oficina do diabo”, diz o ditado popular. O trabalho em presídios é essencial para a ressocialização?

RESPOSTA - Não há dúvida de que é necessário garantir formas típicas de integrar socialmente as pessoas, e na medida em que o trabalho é a uma das formas mais comuns de integração social, a sua garantia deve ser essencial.

Num país extremamente desigual como o Brasil, que nos últimos 6 anos, com a ascensão de grupos fascistas ao poder, experimentou o desmonte de uma série de serviços públicos essenciais, garantir – ou ao menos não tentar impedir, como tem sido feito – a universalização do ensino básico e superior, o acesso à previdência pública, à saúde e ao trabalho, são, sim, prioridades, inclusive para as pessoas que cumprem pena.

No entanto, a reflexão que procurei construir no livro vai um pouco além, porque a ideia passa por questionar o papel que a exploração do trabalho fora e dentro do cárcere tem na reprodução de estruturas como a do sistema prisional. E como processos econômicos, como a crise do capitalismo, influenciam muito fortemente nisso, desde o desemprego, baixa dos salários, aumento de penitenciárias e de presos, construindo um terreno muito fértil para o surgimento de cadeias de administração privada.

PERGUNTA - A tendência é de se aumentar, no Brasil, o número de penitenciárias privadas?

RESPOSTA - Apesar de ainda serem minoria, essa espécie de organização carcerária tem tido um espaço cada vez maior não só nos debates, mas também nas políticas penitenciárias. Eu acredito que, ao longo dos próximos anos, vamos assistir um aumento cada vez maior desse tipo de estabelecimento prisional, principalmente por conta do processo histórico e político de aprofundamento do movimento estrutural e reprodutivo do capitalismo que enfrentamos.

As polícias passaram a dividir espaço com formas particulares de realizar a segurança. Por mais que não se garanta à modalidade privada de vigilância todos os poderes, ela existe e exerce o seu papel em colateralidade junto às polícias públicas.

As escolas perdem cada vez mais espaço para as grandes empresas de ensino que, dotadas de um forte poder financeiro, passam a ocupar um espaço de tenência frente à forma geral de disponibilização da educação.

Na mesma linha seguem os presídios. A forma pública da prisão, num cenário marcado pela procura de novos espaços para gerar a circulação de mercadorias e a reprodução de uma economia capitalista, passa a ceder um espaço para formas privadas de gerenciamento da pena criminal.

Isso acontece muito por conta de processos econômicos e políticos que são próprios do atual estágio do capitalismo, que eu tento explicar de forma mais detalhada no livro. Se pudesse sintetizar, eu diria que é simplesmente impossível entender fenômenos como a privatização prisional e a exploração do trabalho sem levar em conta o modo como o sistema capitalista funciona e opera em todas as áreas da sociedade.

PERGUNTA - “Se os governantes não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios”, disse o antropólogo Darcy Ribeiro há 40 anos. Ele estava certo?

RESPOSTA - Ao que parece, a falta de dinheiro sempre está limitada a atingir determinados setores da sociedade, como a pesquisa científica, a seguridade e a previdência social ou as universidades públicas. Qualquer ideia ou política que seja minimamente refletida no aumento do aprisionamento da juventude pobre e negra brasileira ainda não encontrou restrição orçamentária no Brasil.

Nós precisamos entender como os arredores da política brasileira sempre se nortearam por uma concepção muito errada de que a função do direito penal ou da justiça é de promover o aprisionamento das pessoas, quando na verdade a sua função é exatamente limitar o poder de punir do Estado.

Tomar consciência desses fatores é essencial não só para que consigamos finalmente pensar políticas concretas que promovam uma melhor condição de vida para as pessoas que estão vulnerabilizadas socialmente (e que são a clientela do sistema de justiça criminal), mas para que também entendamos que andar no caminho do progresso não passa, de maneira nenhuma, pelo aumento da repressão penal e do aprisionamento.

PERGUNTA - No livro, você fala muitas vezes sobre a necessidade de uma “crítica radical”. Em que seu trabalho pode ajudar na ressocialização de detentos?

RESPOSTA - A necessidade de construir uma nova crítica radical do direito e do que está ao seu redor significa compreender que é impossível separar a forma como o poder judiciário e a questão criminal operam da forma como a política, a economia e a história se constroem e se estruturam ao longo dos anos e séculos.

Ser radical significa agarrar a coisa pela raiz. Ou seja, para entender o modo como a prisão brasileira se torna o que é hoje, é preciso estudar e compreender como ela se ergueu ao longo de toda a história do Brasil e, finalmente, aceitar que o projeto político de sua formação é profundamente marcado pela violência de raça e de classe.

Para isso precisamos falar sobre o escravagismo, sobre questões políticas, sobre crise econômica; porque tudo isso influenciou, e muito, a maneira como o direito penal e o cárcere se estruturaram como instituições centrais na formação do país, e mais ainda, como a imposição da pena criminal sempre se associou a alguma forma de exploração do trabalho, o que é uma particularidade muito notável do Brasil para que fenômenos como o da privatização prisional se tornassem possíveis e encontrassem, em nossa geopolítica, um solo muito fértil.

Dito isso, acredito que o livro tem muito mais a contribuir para que seja possível repensar por completo a forma como pensamos a prisão e o direito penal no Brasil, o que inclui repensar o trabalho e os impactos das desigualdades e contradições sociais para o país.

Minha proposta é ir além de conceitos limitados e já superados como “ressocialização” ou “reintegração social”. A ideia é dar um passo além para a crítica do direito, que é justamente agarrar as raízes das mazelas do Brasil e finalmente buscar um caminho que nos permita não só nos entender, mas também transformar.