UM HOMEM APAIXONADO PELA MEDICINA, PELO FUTEBOL, PELOS AMIGOS

Categoria: ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO
Publicado em: 28/04/2023 11:27:54

Final da década de 1970. O relógio estava mais próximo das onze horas do que do meio-dia quando a auxiliar de enfermagem Vera Santana se sentou à mesa, em um sábado, para almoçar. Vera estava na casa da mãe e começaria, ali, a curtir uma rara folga dos plantões na Santa Casa. Não conseguiu, porém, sequer tocar o prato. O advogado Artur Antônio literalmente invadiu a casa de dona Sebastiana, no Jardim Santa Luzia. Esbaforido, ordenou:

– Vera, vamos!

– Doutor Sotero tá precisando de você.

– Agora!

Entraram no Fusca amarelo de Artur Antônio e, sob os protestos de dona Sebastiana, dispararam rumo ao hospital. Não havia tempo a perder. Um garoto dera entrada no centro cirúrgico, em estado gravíssimo, com duas balas de revólver no abdômen. Sob o comando de doutor Sotero, o desafio da equipe era localizar e extrair as balas, a fim de estancar a hemorragia e reduzir o risco de infecção.

Foram horas e horas de trabalho intenso. Ninguém ali podia deixar o centro cirúrgico para nada. A tarde se fora, a noite chegara. Com o avental branco empapado de sangue, Sotero recebia goles de água e às vezes de refrigerante por um canudo, segurado por Vera, que também lhe dava, na boca, pedaços de pão ou de algum sanduíche. As mãos o médico mantinha grudadas no peito, para que as luvas ensanguentadas não tocassem em nada e, assim, não fossem contaminadas.

A hemorragia era impiedosa. O garoto ainda perdia sangue. E de sangue necessitava. Naquela época, não havia material regular em estoque. Sempre que necessário, a Santa Casa recorria a uma lista de doadores. Mas não havia tempo para um exame que detectasse a tipagem do paciente e, menos ainda, para chamar algum doador compatível.

Doador universal, Sotero pede a Vera que tire sangue dele mesmo. O caso era urgente. Não havia tempo a perder. A auxiliar de enfermagem o espeta e inicia a retirada de 400 ml, a quantidade padrão recomendada para que o organismo recomponha o sangue sem que a pessoa sofra consequências.

– Tira mais um pouco, Vera.

– Não, doutor. Se eu tirar mais, o senhor não para em pé.

– Tira mais. Pode tirar um litro.

E a batalha pela vida continuou. Durante 26 horas, doutor Sotero, a auxiliar de enfermagem Vera Santana e outros integrantes da equipe não arredaram pé do centro cirúrgico. Às 13 horas de domingo, a situação parecia finalmente controlada. Quatro meses depois, o garoto – que levou dois tiros ao defender a mãe da fúria de ciúmes do pai – recebia alta médica da Santa Casa de Guará.

Relatada pela auxiliar de enfermagem Vera Santana e confirmada pelo advogado Artur Antônio, essa é uma das muitas passagens que marcaram a trajetória profissional de um médico que dedicou a vida a cuidar das pessoas, com uma abnegação absurda ao trabalho e um desapego inacreditável ao dinheiro – muitas vezes, em prejuízo da própria família e de sua própria condição financeira. Um forasteiro que adotou Guará como sua terra. Um homem que amava a profissão acima de qualquer coisa.

“Trabalhei com doutor Sotero do primeiro até o último dia dele na Santa Casa”, afirma Vera Lúcia Santana, em entrevista na mesma casa onde, muitos anos atrás, Sotero cultivava um estranho hábito: passar o pé descalço no cimento vermelho da antiga varanda, quando a visitava, geralmente nos dias em que, dali, seguiria para uma partida de futebol.

“Trabalhamos juntos 25 anos. Nesse período, convivi mais com ele do que com minha família. Doutor Sotero virava dia e noite, noite e dia, na Santa Casa. Rimos e choramos demais, juntos. Era muito dedicado. Podiam chamá-lo mil vezes à Santa Casa que ele ia sem reclamar. Nunca visou dinheiro, não era egoísta”, conta Vera, que teve na Santa Casa de Guará seu primeiro e único emprego – lá trabalhou por 44 anos e seis meses.

“Ele contava pra gente que quase não dormia. Muitas vezes programava oito cirurgias para o mesmo dia. A primeira ele marcava para as 5h45 da manhã”, prossegue Vera, que guarda fotos de festas de aniversário e confraternizações das quais o amigo participou, além de outros objetos para ela históricos, como o cartão do próprio pré-natal – que Sotero acompanhou – e o panfleto de uma das campanhas políticas dele para vereador.

“Lembro direitinho o último dia dele na Santa Casa: 17 de outubro de 2010”, afirma a auxiliar de enfermagem, hoje aposentada, se referindo à data em que, com sinais já evidentes de demência, Sotero deixou o trabalho no hospital. Edson Sotero de Almeida morreria quase sete anos depois. “Não fui no velório dele, não”, afirma Vera. “Fiquei ruim demais ao saber que ele tinha morrido.”

Vera Santana lembra dos muitos casos de atendimento de urgência prestados por Sotero na Santa Casa, grande parte vítimas dos acidentes que ocorriam com frequência nos tempos em que a Rodovia Anhanguera era de pista simples. Certa ocasião apareceu por lá o casal Jane e Herondy, famoso ainda hoje pela canção “Não se vá”. Em início de carreira, ao voltar de uma apresentação em Minas, a dupla acidentou-se perto de Guará, sem maior gravidade.

Após o atendimento, Sotero os encaminhou à secretaria do hospital com a receita, para que adquirissem os medicamentos necessários. Alegaram que não tinham dinheiro, nem para o atendimento, nem para os remédios. Do jeito dele, Sotero contornou a situação: não precisariam pagar, desde que fizessem um show na cidade. Jane e Herondy redigiram um documento de próprio punho, comprometendo-se. O show foi realizado dali poucas semanas, na Associação Atlética Guaraense, com todo o faturamento destinado à Santa Casa de Guará.

Mineiro vascaíno

Edson Sotero de Almeida nasceu no dia seguinte ao Natal de 1948 em Santa Bárbara, então distrito de Itapira, no colar metropolitano de Belo Horizonte. É o mais novo dos dois filhos de Breno Sotero Alves e Maria José de Almeida Alves, donos de um sítio de sete alqueires, onde criavam gado de leite e produziam queijo.

Por alguma desavença familiar, para a qual não há explicação, Edson e o irmão mais velho, José, não foram registrados com o sobrenome do pai, Alves. Caso tivesse conhecido o motivo, este morreu com Sotero. O fato é que, mais tarde, Sotero iria registrar seus dois filhos sem o Almeida que herdara da mãe.

Os primeiros anos de estudo Sotero cursou na escola rural de Santa Bárbara. Em busca de uma educação melhor para os filhos, Breno Sotero Alves resolveu levar a família para Juiz de Fora. A família era mantida com a aposentadoria de Breno no extinto Funrural e com a renda do pequeno rebanho, agora aos cuidados da cooperativa de leite de Santa Bárbara.

Sotero concluiu o primeiro e também cursou o segundo grau no Instituto Granbery, em Juiz de Fora, região mineira com forte influência carioca, o que justifica sua paixão pelo Vasco da Gama. Concomitante ao colegial, trabalhava em uma farmácia no bairro de São Mateus. Logo no primeiro vestibular, ingressou na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora.

Como universitário, participou do Projeto Rondon, criado pelo governo de plantão para levar assistência médica às áreas mais carentes do sertão nordestino e da região amazônica. Durante um mês, integrou o campus avançado da Universidade Federal de Juiz de Fora no município de Tefé, no Amazonas.

Até 1973, ainda estudante, participou ativamente do serviço de assistência médica do Hospital de Emergência da Sociedade São Vicente de Paulo, foi estagiário no Hospital de Acidentados, plantonista do Pronto Socorro Municipal e, também, estagiário concursado do Hospital Bom Pastor, sempre em Juiz de Fora.

O encontro com Rita

A história de Sotero com Guará começou a se desenhar quando, ao final do curso, estagiou no serviço de Anestesiologia do Hospital Beneficente Santo Antônio em Orlândia e no setor de Ginecologia e Obstetrícia do Serviço de Cirurgia do Hospital São Francisco, em Ribeirão Preto, onde cumpriu residência médica.

Em Orlândia, os residentes de Medicina jogavam futebol em uma casa em frente ao hospital. Em um dos jogos, Sotero conheceu Rita, uma estudante de Odontologia na USP-Ribeirão. A garota era prima da dona da casa. Namoraram por três anos. Em 1976, Edson Sotero de Almeida casou-se com Rita Teresa Lupoli.

Rita Lupoli tinha, já naquela época, estreitas relações com Guará. É neta de Salvatore Lupoli, oriundo de Napoli, na Itália. Na primeira metade do século passado, Salvador – como passou a ser chamado no Brasil – abriu o primeiro restaurante (que também vendia pães) e o primeiro cinema de Guará.

Ao contrair tuberculose, foi se tratar no Rio de Janeiro. Quando retornou, viu os negócios ruírem: os clientes deixaram de frequentar ambos os estabelecimentos, com medo de se contaminar. Desgostoso e desapontado, Salvador vendeu tudo o que tinha e mudou-se com a família para São Joaquim da Barra, onde Rita, filha de Antônio, nasceria em 12 de novembro de 1953.

Casados, Rita acompanhou Sotero – já aprovado em concurso do Estado – em seus primeiros empregos como médico, em um vaivém entre os hospitais de Patrocínio Paulista e Santa Albertina. Em 1977, em Patrocínio, nasceu Marcelo. No fim do mesmo ano, a convite de um colega de faculdade em Juiz de Fora, Luiz Carlos Bertges, que trabalhava em Guará, Sotero assumiu a vaga de cirurgião geral da Santa Casa local, que ficara descoberta com a saída de Hassan Mourani.

O segundo filho, Henrique, nasceu aqui, em 1979. Ambos – Marcelo e Henrique – são formados em Direito e atualmente trabalham na prefeitura de Guará, como secretários municipais de Governo e de Negócios Jurídicos, respectivamente.

Na Santa Casa desde 1977

Edson Sotero de Almeida ingressou na Santa Casa de Guará no dia 1º de dezembro de 1977, como médico responsável pelos serviços de Ginecologia/Obstetrícia e Cirurgia Geral, especialidades para as quais ele obteve alta capacitação ao participar de muitos cursos no início e no decorrer da carreira.

Em 1973, ainda universitário, participou de dois cursos na 1ª Bienal Médica de Juiz de Fora: sobre Técnicas Metodizadas em Cirurgia do Aparelho Digestivo e sobre Atualização em Cirurgia. Em 1977, já formado, fez três cursos durante o 5º Congresso Médico do Oeste Paulista, em São José do Rio Preto: Atualização em Câncer Ginecológico, Ultrassonografia em Tocoginecologia e Mamografia e, por fim, Laboratório na Gestação de Alto Risco.

Os conhecimentos na área da saúde da mulher foram aprofundados pela participação em dez edições do Encontro Paulista de Atualização em Ginecologia e Obstetrícia, sempre em Águas de Lindóia, em 1980, de 1985 a 1993 e em 1998. E também com a participação no Fórum Regional de Saúde da Mulher, em 1990, e na 3ª Jornada de Ginecologia e Obstetrícia da Maternidade Sinhá Junqueira, em 1994, ambos realizados em Ribeirão Preto.

A capacitação em Medicina do Trabalho, área em que atuou por mais de 20 anos em empresas como a Bunge/Elekeiroz, Sotero obteve ao participar do Curso de Especialização em Medicina do Trabalho em 1980 em Ribeirão Preto e do Congresso Multidisciplinar de Segurança do Trabalho, em Salvador, em 1989.

Seu currículo contém ainda cursos e simpósios, nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, sobre Amamentação Materna, Ultrassonografia em Medicina Interna, Patologia Cervical Uterina e Colposcopia, Ecografia, Acidentes por Animais Peçonhentos e Gravidez de Alto Risco.

Sete mil partos

Tamanha capacitação se refletiu nos sete mil partos realizados – é difícil encontrar alguém em Guará que não tenha nascido pelas mãos de Sotero ou ao menos que tenha uma pessoa da família ou um amigo nessa condição – e no sem-número de cirurgias comandadas por ele nos 32 anos em que atuou na Santa Casa. Não à toa, o Centro Cirúrgico do hospital leva seu nome, homenagem prestada em vida.

“O Sotero tinha uma característica rara, difícil de se encontrar hoje em dia: na medicina, ele conseguiu juntar a parte humana e a parte técnica”, afirma Alcides Antônio Maciel Júnior, que o auxiliou em muitas cirurgias em Guará. Alcidão, como é conhecido, revela que Sotero o ensinou a técnica da histerectomia vaginal, que consiste na retirada do útero pela vagina. “No que ele se propunha a fazer, era excelente”, acrescenta o amigo de profissão e de longas conversas sobre futebol.

A “parte humana” ressaltada por Alcides Antônio Maciel é corroborada por Benedito Marcos Jorge, o Moitinha, que durante três ou quatro anos trabalhou no setor de enfermagem da Santa Casa. “Sotero foi um paizão para todos que passaram pela Santa Casa. Entrava cedo, saía à noite. Comia com a gente no refeitório, sem frescura. E visitava os pacientes em casa, depois de uma cirurgia ou um internamento. Era mesmo um paizão, principalmente para os mais pobres”, afirma ele.

“Poderia ter ficado milionário, mas nunca colocou o dinheiro à frente de nada. Muitos o achavam arrogante, pelo jeitão dele, mas era só casca. Quem o conhecia melhor sabia que era um baita de um ser humano”, acrescenta Moitinha. “Sotero era um homem introvertido, de poucas palavras”, confirma a esposa Rita.

Depois de alguns anos trabalhando com Sotero na Santa Casa, Benedito Marcos Jorge o teve como freguês assíduo no Bar do Moitinha e como companheiro nos times dos quais Sotero fez parte, seja como técnico, como diretor ou em qualquer outra função. “De uma forma ou de outra, ele queria estar envolvido. Após os jogos, o almoço ou o churrasco era quase sempre na casa dele.”

Quando Moitinha transferiu o bar para o Jardim Alvorada, Ademir Geraldo Tavares assumiu o estabelecimento, no Centro. E o deixava aberto até mais tarde, porque sabia que por volta das 21 horas Sotero chegaria, para degustar algumas cervejas – em copo de alumínio, que Ademir teve que providenciar – acompanhadas de porção de tomate com palmito. “Ficava horas comigo lá, conversando sobre o trabalho e a vida”, conta Ademir.

O lado festeiro

Em contraste com o aspecto sisudo em sua rotina como médico, Sotero exibia sua face festeira com a turma do futebol, em pescarias no Mato Grosso e com uma trupe que, segundo o filho mais novo, ficou conhecida como Os 11 Amigos. “Toda sexta-feira, durante dez anos ou mais, o pessoal se reunia para comer e beber na casa de um deles: Clovinho, Fernando Coelho, Toninho Chaud, Humberto Bordin, Zé Afonso, Jordão, Eloinho, Tim...”, conta Henrique, que o acompanhava nos rachões de futebol e nas confraternizações regadas a churrasco e samba. “Meu pai gostava de receber gente, tinha prazer em estar no meio das pessoas.”

Fã de grandes cantores como Nelson Gonçalves, Agepê, Altemar Dutra e Simone, e de Roberto Dinamite e Romário no futebol, nas poucas horas vagas doutor Sotero dava uma esticada básica a Ribeirão Preto para um chopp no Pinguim – gostava do “pingado”, o chopp amarelo misturado com o preto – e para um “Filé a Deputado” na Cantina 605, na Rua Amador Bueno.

Às vezes, intimava algum amigo para uma esticada mais longa. Em 1997, o hoje prefeito Vinicius Magno Filgueira o acompanhou a uma viagem ao Rio de Janeiro, onde o filho Henrique estudava. Passaram por Juiz de Fora, para visitar a mãe de Sotero. Antes de seguir viagem para o Rio, mortos de fome, no meio da tarde procuraram um lugar para comer. Viram uma churrascaria. Garçons já recolhiam as mesas, alegando que o expediente se encerrara.

“Que pena”, lamentou Vinicius ao gerente. “Logo hoje que o diretor da Mercedes está aqui”, ele arrematou, desviando o olhar para Sotero e para a construção ao lado, que exibia o símbolo da montadora alemã. A artimanha deu resultado: foram atendidos como reis e saíram de barriga cheia para a capital carioca.

Histórias do futebol

Em 1994, com Sotero como técnico, o time da Associação Atlética Guaraense caía pelas tabelas no Campeonato Regional promovido pela Liga de Futebol Amador de Franca. Ciente de que não iria ferir o orgulho do pai, Henrique propôs que arrumassem um treinador para tirar a equipe daquela situação. “Conversei com o professor Tufi, que aceitou”, conta o caçula.

Agora sob novo comando, a AAG precisava vencer o último jogo, contra o Acássia, em Ituverava. A vitória salvadora veio com um gol espírita, de um zagueiro reserva que Tufi Chaud mandara a campo nos derradeiros minutos da partida. Classificado para a segunda fase na bacia das almas, a Guaraense embalou e chegou à decisão, contra o Internacional, de Franca. Em casa, venceu por 2 a 0, gols de Nenê e Tomezinho – este uma pintura, de bicicleta. No jogo da volta, em Ribeirão Corrente, segurou o 0 a 0 e sagrou-se campeã.

Antes de montar times, Sotero chegou a jogar, inclusive na Guaraense. No futsal, integrava um time da Santa Casa – apropriadamente apelidado de Bisturi Futebol Clube – que enfrentava outras equipes formadas em instituições de saúde na região. Rivalidade, mesmo, era contra o time do INSS de Ituverava. Para aumentar as chances de vitória, Sotero convocou o bancário Wladimir Ramos Silveira, craque nas quadras.

Era proibido, porém, escalar quem não fosse funcionário da Santa Casa. Guará venceu. E os adversários – principalmente um tal de Raul – ficaram ressabiados com a atuação daquele loirinho magrelo bom de bola. A manobra foi descoberta quando, semanas depois, Wladimir teve de ir a Ituverava revalidar a carteira do INSS. “O mesmo cara que havia desconfiado de mim descobriu, naquela hora, que na verdade eu trabalhava no Comind”, conta Wlad.

Coincidentemente, após a falência do banco, Wladimir trabalhou por 27 anos na área de contabilidade da Santa Casa de Guará. “Como o pessoal sempre fala, o Sotero morava lá. Atendia todo mundo, sem distinção”, ele reforça. “Além disso, se preocupava também em conseguir recursos para o hospital”, acrescenta Wlad.

Wladimir lembra-se de ele e outros funcionários do hospital terem acompanhado doutor Sotero em Brasília, para audiência com o ministro da Saúde, Adib Jatene, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. “Fomos muito bem recebidos, mas o ministro ponderou que, se desse dinheiro para Guará, teria também que fazer o mesmo para as Santas Casas do Brasil inteiro. Mesmo assim, nos cedeu uma carga de medicamentos que nos ajudou por um bom tempo.”

Decepção política

A trajetória de Edson Sotero de Almeida em Guará foi muito além do exercício profissional. Sócio número 709 da Associação Atlética Guaraense, era participante ativo de shows e leilões beneficentes. Teve também destacada carreira política. Foi eleito para três mandatos consecutivos como vereador, em 2001-04, 2005-08 e 2009-12.

As vitórias nas eleições proporcionais ocorreram após duas decepções em eleições majoritárias. Em 1992, candidatou-se a prefeito, com Arlindo Marin como vice. Perdeu para a chapa Chiquinho Iozzi-Elídio Cherutti por incríveis 64 votos. Em 2000, como candidato a vice, compôs chapa com Marco Aurélio Migliori, derrotado por Alcides Furtado. “Sotero amava a Santa Casa de paixão e, por isso, o sonho dele era ser prefeito, para melhorar o atendimento à população”, afirma a doutora Rita.

Experiência e inspiração

“Foi ele quem me inspirou a fazer Medicina”, afirma o cunhado, Marcelo Lupoli, que, formado, recebeu de Sotero convite para trabalhar junto a ele no setor de cirurgia geral da Santa Casa. “Sotero me passou toda experiência que tinha”, agradece Marcelo. “Por trabalhar com ele, carrego ensinamentos para a vida toda, desde a parte prática, como excelente e habilidoso cirurgião que era, até como lidar com os pacientes, a atenção, o cuidado e sobretudo o respeito. Foi um profissional muito sério; isso ficou marcado em mim.”

Marcelo Lupoli destaca que, por conta da competência, Sotero recebeu, ao longo da carreira, várias propostas de trabalho, mais vantajosas financeiramente, de cidades como Ituverava, Ribeirão Preto e Juiz de Fora. “Sotero abriu mão de todas, para continuar em Guará. Ele sempre foi muito dedicado à cidade. Abria mão da própria casa dele e da família para ficar na Santa Casa, atendendo as pessoas. Praticamente viveu para a cidade e seus pacientes”, afirma Marcelo. “Guará tem uma dívida muito grande com ele.”

‘Amor e ódio’

Outra testemunha da dedicação de Sotero à profissão e à Santa Casa em particular é o farmacêutico-bioquímico Ayrton Costa, que define a relação que tinham como “de amor e ódio”. O ódio, no caso, é uma mera licenciosidade poética de Ayrton. “Terminei a faculdade em 1980, vim para Guará em agosto de 1981 e, desde então, trabalhei com Sotero”, afirma ele, que fundou, em sociedade com a biomédica Dalete de Paula Asse, o laboratório que, por muitos anos, prestou serviços à Santa Casa, na área de análises clínicas.

“A Santa Casa era a vida do Sotero. Ele tinha prazer em permanecer lá, mesmo quando podia estar em casa ou com amigos, se divertindo. Ninguém acompanhava o ritmo dele. Vamos pegar uma piscina, Sotero? ‘Não, vou atender’, ele dizia, ‘se pode ser feito agora, vamos fazer’. Ficávamos putos porque queríamos viver as nossas vidas e, naquele pique, ele mobilizava todo mundo”, afirma Ayrton.

“Da cabeça para baixo, Sotero operava tudo. Passava segurança, era um profissional de extrema confiança. Uma lenda!”, define Ayrton Costa. “Eu tinha acesso livre ao centro cirúrgico e, por isso, tivemos um relacionamento muito próximo. Quem passou por aqui, sabe. Em termos de trabalho e competência, não tinha pra ninguém”, ele acrescenta. “Tenho certeza de que o Alzheimer que ele contraiu foi por conta da carga excessiva de trabalho.”

‘Devolve o dinheiro, Kelly’

Kelly Cristina dos Santos tinha 14 anos quando recebeu a chance de trabalhar, como secretária, no consultório que Sotero mantinha com o cunhado Marcelo Lupoli e a esposa dele, Rosebel, na Rua Barão do Rio Branco.

“Eu chorava muito, achava que não ia conseguir. Doutor Sotero ficava bravo comigo, naquele jeitão dele”, relata Kelly, filha de dona Tezinha, que lavava roupas na residência do casal Rita-Sotero. “Depois passei a conhecê-lo melhor e deu tudo certo. Ele me incentivou a tirar carta, a estudar”, conta ela, que se formou em Enfermagem em uma escola profissionalizante de São Joaquim da Barra.

“Doutor Sotero faz muita falta para Guará. Ser humano igual a ele não tem”, diz Kelly, ao destacar muitos casos que Sotero atendia em seu consultório particular e não cobrava pelo atendimento, quando a pessoa não tinha condições de pagar. Em uma ocasião, teve que devolver o dinheiro ao paciente.

– Mas, doutor, o senhor não pode deixar de cobrar, é particular – Kelly ralhou com ele.

– A clínica é minha. Devolve o dinheiro! – determinou.

Kelly diz ter ouvido recentemente a história de um lavrador que, certa vez, tocou a campainha da casa do médico. A semana inteira ele tinha levado a neta Alice à Santa Casa, com fortes dores. O plantonista receitava algo e a mandava para casa. Foi assim um dia atrás do outro, sem que a neta melhorasse. Desesperado, o avô foi à casa de Sotero. Alegou não saber mais o que fazer.

– Pelo amor de Deus, doutor, atende minha neta.

– Vá para a Santa Casa. Me dá cinco minutos que eu chego lá.

Sem recurso de ultrassom ou tomografia, Sotero examinou Alice apalpando-a. Diagnosticou uma apendicite e imediatamente encaminhou a garota para o centro cirúrgico. Problema resolvido. Dias depois, o avô apareceu no consultório e perguntou à secretária quanto devia. Avisado por Kelly, Sotero mandou a resposta: um frango caipira e não se fala mais no assunto.

‘Alma nobre de verdade’

Em 1993, aos 18 anos, Sandra dos Santos Tavares morava em Franca, onde cursava o primeiro ano de Serviço Social na Unesp. Em Guará, durante uma visita à família, sofreu com vômitos. Foi à Santa Casa. Doutor Marcelo pediu um ultrassom. Sandra estava grávida, de dois ou três meses. A orientação foi a de que, a partir daquele momento, fizesse o pré-natal.

Sandra fez exatamente o oposto. Fechou-se. O mundo, para ela, desabou. Ficou desesperada. Na verdade, em pânico. Não conseguiu se abrir com ninguém. Principalmente com a família. Passou a negar a própria condição, como se nada tivesse acontecido. “Fiquei com muito medo de causar decepção, tristeza e revolta em casa. Não era o que tinham planejado para mim, chegar em casa com um filho, sem pai, sem profissão.”

Em Franca, durante uma aula na Unesp, na sacada de quatro metros de altura, pensou: “Vou me jogar daqui. Daí, resolvo o problema”. Sandra não se atirou. Permaneceu, entretanto, fechada em si mesma, sem conseguir compartilhar o drama.

A gravidez evoluía. Doutor Marcelo estranhou que não tivesse aparecido mais na Santa Casa. Comentou com doutor Sotero, que a procurou. Sotero passou a acompanhá-la, até o parto, que ele próprio realizou. No dia 12 de julho de 1994, aos oito meses de gestação, nascia Isabela.

“Doutor Sotero ficou comigo durante todo o parto. A atitude dele, de ficar preocupado comigo, de me procurar, me tirou do fundo do poço. Vi uma luz em meio a uma escuridão muito grande. Tenho uma gratidão enorme pela assistência, pelo carinho, pela preocupação, por todo o cuidado que teve comigo”, afirma Sandra, que se casou e hoje tem outra filha, Bianca, de 19 anos. “Doutor Sotero era uma alma nobre de verdade. Sem ele, não teria conseguido superar aquele momento de desespero”, ela assegura. “Sotero salvou a minha vida. A minha e a da minha filha também.”