GUSTIM, MASSAGISTA. MAS PODE CHAMAR DE DOUTOR AUGUSTO

Categoria: ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO
Publicado em: 04/09/2023 12:57:55

A foto do time da Associação Atlética Guaraense no Centro Esportivo e Recreativo do Trabalhador (CERET) em São Paulo mostra todo o elenco de 16 jogadores que viajaram à capital paulista e outras três pessoas: o auxiliar técnico Adilson Chaud, o filho dele, o mascote Adilsinho, e, fechando a linha dos agachados, um personagem que muito teve a ver com a excelente campanha protagonizada pela AAG na Copa Arizona de 1977.

O nome: Augusto Silvério da Silva.

O apelido: Gustim.

A função: massagista.

Por ser funcionário da associação, Gustim acompanhou o time da Guaraense de meados da década de 1960 a meados da década de 1980, tecnicamente falando uma das melhores fases da AAG, incluindo o período das quatro participações na Copa Arizona, em 1976-77-78-79.

Patrocinada por uma marca de cigarro e divulgada pelo jornal A Gazeta Esportiva, essa competição definia as melhores equipes amadoras do Estado de São Paulo. Em 1977, a Guaraense alcançou o triangular final. Empatou com Valinhos fora e, em casa, perdeu para o campeão Botafogo da Penha.

Gustim estava lá, como mostra outra rara imagem daquela campanha, dele com Neinho, Fernando Coelho e Tim no gramado do Estádio Arthur Alves dos Santos e, atrás deles, na lateral oposta, torcedores do time paulistano, com bandeiras e muito batuque.

Nos vinte anos em que acompanhou o time da Guaraense, Gustim realizou sabe-se lá quantos atendimentos, adentrando o gramado – com ou sem autorização do juiz – em alta velocidade para socorrer um dos nossos.

Em uma época de gramados esburacados, zagueiros brutos e árbitros complacentes, qualquer bola dividida representava riscos de um pisão em falso, uma canela escalavrada, uma paulistinha cruel, um ligamento rompido, um tornozelo em frangalhos.

Quando um atleta da AAG estatelava no chão, Gustim disparava, garrafa com água gelada numa mão, na outra a bolsa de couro cheia de bolsos, com éter, pomadas e outros produtos milagrosos que, diziam, levantavam até defunto.

Fizesse chuva ou sol, em campo de grama ou de terra, Gustim vestia-se de branco, dos pés à cabeça. Calça, camiseta, jaleco, sapatilha, todos brancos – inclusive a toalha de rosto que carregava em volta do pescoço. “Chamávamos ele de Doutor Augusto”, conta o então zagueiro Toninho Chaud, hoje professor aposentado e diácono da Igreja Matriz, referindo-se à indumentária impecavelmente branca de Gustim.

Daquela partida no campo do CERET, Toninho guarda a lembrança de um perrengue daqueles, envolvendo Gustim. A delegação de Guará ficaria hospedada no Ibirapuera. O ginásio, porém, já estava ocupado pelas seleções feminina e masculina de vôlei. Paulo Nakano, que morava na capital paulista, conseguiu vagas no alojamento do Pacaembu. No trajeto entre o ginásio e o estádio, no ônibus Gustim repetia a todo momento:

– E esse Pacaembu... não chega nunca?

A pressa, afirma Toninho, não tinha nada a ver com cansaço ou fome e, sim, com certas manifestações estranhas no intestino do massagista, que necessitava de um alívio urgente.

O centroavante Geraldo, artilheiro da Copa Arizona de 1977, se recorda de quando a maleta de Gustim – então de madeira, pintada com a cruz dos primeiros socorros – se abriu durante uma corrida e, na volta do atendimento, o massagista teve de recolher todo o material que se espalhou pelo gramado, para delírio da torcida local.

Geraldo lembra também do famoso jogo da Guaraense com o juvenil do Vasco do Gama, em 1970. Era o dia do aniversário da cidade e o clube carioca – onde jogavam o guaraense Paulinho e um jovem promissor já apelidado de Roberto Dinamite – era a grande atração. Gustim apitava a preliminar. A torcida estava ansiosa pelo jogo principal. Com os dois times já posicionados próximos ao portão de acesso ao campo, alguém o avisou:

– Gustim, pode terminar.

– Peraí, ainda falta um minuto – respondeu, para desespero geral.

Não obstante os atendimentos que “doutor Augusto” prestava em campo para os atletas da Guaraense, massagista remete, na verdade, à função que ele exercia antes das partidas: a de massagear coxas e panturrilhas de modo a ativar a musculatura das pernas dos jogadores. Às vezes, a massagem se dava nas costas, para aliviar uma dor lombar, ou no pescoço, para amenizar dores na coluna cervical.

Augusto Silvério da Silva era mineiro de Sacramento, onde nasceu em 6 de setembro de 1944. Foi o quinto ou sexto dos dez filhos de Manoel Silvério da Silva e Ana Francisca de Jesus, que decidiram migrar para o estado de São Paulo. Antes de chegar a Guará, passaram por Uberaba e Igarapava. Manoel e os filhos mais velhos trabalharam na pedreira do distrito de Pioneiros.

Gustim tinha entre 16 e 17 anos quando a família chegou por aqui. Com apenas o ensino primário, começou a ganhar uns trocados como ajudante em oficina mecânica e como auxiliar de pedreiro. Trabalhou um bom tempo na prefeitura, na poda de árvores, até ser contratado como zelador da AAG.

Na sede social do clube, fazia de tudo: limpava as piscinas, cuidava da molecada, tocava o bar em noites de bailes e carnaval e, de vez em quando, distribuía broncas, quando necessário. Certa vez, enquadrou um conhecido médico que ameaçava esvaziar a bexiga dentro da sauna. Zeloso do regulamento, chamava atenção dos moleques que, mesmo sem idade, queriam porque queriam frequentar a piscina maior, a dos trampolins.

“Com ele, tinham que fazer as coisas direito”, afirma a viúva, Isabel Elpídio da Silva. “Naquela época, muitas mães me diziam que deixavam os filhos no clube sem preocupação porque sabiam que o Gustim cuidava deles.”

Augusto Silvério da Silva começou a deixar a vida de solteiro no dia em que embarcou em um ônibus lotado de guaraenses rumo a Ituverava, para ver uma partida de futebol. Na volta, engraçou-se com Isabel, que fora à cidade vizinha para uma matinê no cinema. Perguntou a ela se poderiam conversar, quando desembarcassem. Isabel deu de ombros:

– Quem sabe...

Tanto conversaram que, em 19 de dezembro de 1964, casaram-se. E não perderam tempo: dez meses depois, nasceu Eliana. Não demorou muito e veio Ronaldo. Os dois primeiros filhos – cujos nomes foram inspirados em personagens de uma radionovela que o casal acompanhava na casa onde moravam, na chácara Bela Vista, de Joaquim de Paula e Silva, o “Naco” – puxaram a mãe na preferência clubística e imprimiram ao lar um placar amplamente desfavorável a Gustim: Corinthians 1, Palmeiras 3.

Isabel conta ter herdado a paixão verde de um padrinho de casamento, Hélio Crialezi, então dono do hoje extinto Hotel São João, onde ela trabalhou. “Meu marido era corintiano doente. Doente e teimoso. Tinha flâmulas do time pela casa toda. Quando o Corinthians perdia, ficava de mal da família inteira”, entrega Isabel. A virada no placar aconteceu com os três erres que vieram em sequência – Rogério, Rodrigo e Renata, todos alvinegros.

Curiosamente, a Associação Atlética Guaraense – onde Gustim trabalhou por mais de 30 anos, até se aposentar – também era alvinegra. O time jogava com uniforme ora todo branco, ora todo preto. Houve uma versão com camisas com listras verticais, como o uniforme número 2 do Timão.

Falecido em agosto de 2021, Gustim, conta Isabel, nunca viu o Corinthians de perto, seja em São Paulo ou qualquer outro lugar. “Mexicano”, apelido de Rogério, chegou a comprar ingressos para a decisão do Campeonato Paulista de 1995, que Corinthians e Palmeiras disputaram em Ribeirão Preto, mas o pai não quis ir. “Ele tinha medo de briga”, explica o filho.

Dona Isabel acredita que Gustim tenha aprendido massagem com o médico Marco Antônio Migliori, que chegou a atuar como meia-armador da Guaraense. “Doutor Marco viu que o Gustim levava jeito e ensinou algumas técnicas para ele”, acredita.

Ortopedista com residência médica no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, atualmente com consultório em Ituverava, Marco Antônio Migliori diz não se lembrar de ter dado dicas de massagens a Gustin. “Talvez eu tenha mostrado a ele como se faz uma botina de esparadrapo”, afirma ele, sobre uma técnica muito útil para se evitar torções de tornozelo.

“Era um homem humilde, muito boa gente, de fácil relacionamento”, afirma Marco Antônio, que conta ter visto, certa vez, uma barbeiragem de Gustim que fez um jogador ver estrelas. “O cara estava com a perna esfolada e o Gustim jogou éter no machucado”, conta o ortopedista. “O cara não viu estrela, viu uma constelação inteira.”

Tenha ou não recebido dicas de um profissional, o fato é que Augusto Silvério da Silva adquiriu um raro talento com as mãos. Isabel conta que muita gente o procurava, em casa, para se aliviar de dores, em qualquer parte do corpo. “Parecia que ele tirava a dor com a mão”, afirma ela, acrescentando que Gustim nada cobrava pelos atendimentos e, para as massagens, usava pomadas e produtos com cânfora, que ele mesmo comprava.

“Eu tinha uns três, quatro anos, e ficava de roda, vendo meu pai fazer massagem, e eu queria fazer também; até ficava imitando ele”, relata a caçula Renata, que por conta dessa memória afetiva chegou a se formar em Massoterapia, em Franca, profissão abraçada também pela sobrinha Luana.

A procura pelo “doutor Augusto” começou a se intensificar, lembra Isabel, a partir do momento em que, com muita massagem e paciência, Gustim praticamente curou o cunhado Arnaldo Rodrigues, o Nardinho, que sofrera um AVC e, com um lado do corpo todo paralisado, ficara três meses sem andar.

“A partir daí virou uma romaria na nossa casa”, diz Isabel. “Teve o seo Geraldo carroceiro, igualzinho o Nardinho. Teve AVC e ficou com um lado paralisado. Gustim fez ele andar. O seo Lola também, mesma coisa. Gustim fazia massagem e andava com ele pelo quarteirão, um pouco de cada vez, até ele sarar.”

“O Gustim não era santo, mas fez muito milagre”, arremata Isabel, sobre o marido que, em março de 2013, recebeu o título de benemérito da Associação Atlética Guaraense, pelos relevantes serviços prestados ao futebol da AAG.

Augusto Silvério da Silva decidiu abandonar a massagem – e, com ela, os atendimentos – quando foi procurado em casa “por duas pessoas, acho que de Ituverava”, segundo Isabel, que disseram que o que ele fazia era charlatanismo e as massagens dele podiam acabar causando danos em alguém.

“Imagina só, falar uma coisa dessa, logo para ele, que só fez bem para as pessoas, sem cobrar nada”, afirma Isabel. “Ao contrário, ele foi muito bom no que se dispôs a fazer. Gustim foi um médico sem diploma.”